quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Poliedra – Parte I (2)

«Se a Mãe não sofresse tanto desse seu complexo de Hipátia, talvez eu gostasse mais de si», sibilava Polly de cada vez que se sentia atacada ao ouvir o seu nome próprio. Dito pela mãe era como se não fosse pronunciado mas, isso sim, vomitado… Rejeitado como algo que desejámos sofregamente mas que acabou por enjoar.

«E a menina Poliedra, terá, por um mero acaso, inveja?», questionava-a a Mãe, em tom insinuante.

«Inveja, Mãe?, de quê: de ter tido a mesma educação esmerada que Hipátia – treino físico diário, arte, ciência, literatura, filosofia e sabe-se lá que mais - mas, ao contrário da primeira grande mulher matemática de que reza a história, o seu único feito considerável e original foi dar à sua filha a versão feminina do nome de um sólido geométrico?!?»

«Poliedra, Poliedra…», repetia a Mãe, de sorriso irónico nos lábios.

E, aos ouvidos de Polly, aquela palavra, irritantemente repetida naquele tom, apoderava-se dela… E fazia-a vibrar até ao canto mais recôndito das suas entranhas.

«A única biblioteca onde a Mãe se senta, em nada é comparável à de Alexandria», replicava depois de retomar o fôlego, «por isso, não queira comparar o "trono" de Hipátia com o seu. De resto, lamento tê-la desapontado pelo simples facto de ter vindo ao mundo no lugar do seu tão desejado menino…»

E as provocações repetiam-se, em catadupa, numa espiral de violência verbal onde o início, meio e fim eram já velhos conhecidos de ambas.
Era este o ponto alto da relação de Polly com a sua Mãe; aquele em que reconhecia que ela era um ser poderoso de saber, gentileza, palavra, talento e beleza, como alguém um dia descreveu a filha de Teão de Alexandria.

De resto, o mau gosto demonstrado no nome que tinha escolhido para lhe dar, dominava todos os outros sentimentos de Polly pela Mãe.

Estaria Polly a tentar prolongar esta relação de amor-ódio entre mãe e filha quando, anos mais tarde...

(continua)

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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Poliedra - Parte I

“Só gostava de saber quem foi o patifório que subornaram para poderem registar-me com este nome!!!!”, berrava ela a plenos pulmões, vezes e vezes sem conta, sempre do cimo daquela dupla escadaria.
Mas não era só disso que gostava: também gostava que todos – TODOS sem excepção – soubessem que considerava o seu nome próprio uma perfeita aberração!

Poliedra.

“Ninguém se chama Poliedra!”

Quanto muito Poliedro, mas teve a sina de nascer rapariga, e a mãe, mulher de fortes convicções, - ou deverei antes dizer…. Teimosa!?! – não se deu sequer ao trabalho de escolher outro nome. Afinal, era assim mesmo que ela imaginava o seu rebento: um ser de carácter sólido, cuja superfície, composta por um número finito de faces, ela conheceria como ninguém.

Mas, ao invés disso, veio ela.

Poliedra.

Ou Polly, como o pai a tratava e como ela obrigava todos a tratarem-na.
Todos, menos a mãe, claro está.

Esta sua raiva – muito pouco contida, diga-se - vinha dos seus tempos de meninice, da cantilena com que os outros miúdos a perseguiam desde que o Sol nascia até que as estrelas começavam a assomar no negro azulado do céu:

«Polly, Poliedra / escura e feia como a pedra /
Polly, Poliedra / junto dela o mal medra»

Polly conhecia muitas pedras. Viver no meio da Serra não lhe dava muito mais para contemplar. Sabia-as de cor: onde estavam, quais as suas cores na madrugada, ao nascer do sol, ao meio-dia e ao pôr-do-sol.
Quando estava cansada, ao invés de as visitar, deitava-se na sua cama, recordava-as uma a uma, e imaginava com o que se assemelhavam: animais, pessoas, seres mitológicos…

Por isso, quando se olhava ao espelho, não compreendia as duras palavras da ladainha: não conhecia nenhuma pedra feia e ela, Polly, não era escura… Bom, talvez o fosse a sua alma, mas, naquela idade, Poliedra ainda estava muito longe de o saber, ainda que a pequena melodia o já adivinhasse.

(continua)

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terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Another Chaos Theory

«Uma lei básica da Teoria do Caos afirma que a evolução de um sistema dinâmico depende crucialmente das suas condições iniciais.
O comportamento do sistema dependerá então da sua situação "de início".
Se analisarmos o mesmo sistema, sob outras condições iniciais, logicamente ele assumirá outros caminhos e mostrar-se-á totalmente diferente do anterior.».

O que explica, então, os comportamentos irracionais e transcendentes de Pi?

Onde estão as “condições iniciais” para que possamos entender o caos em que se tornou a sua vida?

Ou talvez devesse tentar enumerar quantas “situações de início” viveu Pi…

Antes dela existir, havia a Piedade da Consolação:
Quais as condições em que existiu? Em que condições morreu para dar lugar a Pi?

Tantos caminhos percorridos por Pi para fugir de Piedade da Consolação…

Quantas vezes mudou ela as suas condições iniciais, desbravou outros caminhos, apenas para se mostrar totalmente diferente de si mesma?
Quantas vezes se reinventou para assassinar de vez Piedade da Consolação e ser apenas uma tábua rasa onde pudesse gravar um novo sistema dinâmico de Pi?

Mas o que ela não sabia é que o sucesso da soma sucessiva de todas as tentativas de reinvenção de si mesma – aquela que conhecemos como Pi – era, nada mais, que uma reinvenção de um outro sistema dinâmico, condição inicial da sua própria existência: o “útero que a pariu”.

E, para calcularmos os caminhos passados e futuros de Pi, nada melhor que analisarmos o comportamento de quem provocou a sua primordial situação de início: Polly.

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Pi - Parte I (3)

Tal como a organização de espionagem da Alemanha de Leste com o seu nome, – do filme “A Cortina Rasgada” de Alfred Hitchcock (1966) – Pi fazia tudo para encobrir o rasto de Piedade da Consolação.

Prosseguindo no melhor estilo / aura de mistério e perigo que sempre envolvem este tipo de organizações, Pi era perita em sobreviver a interrogatórios de toda a espécie. Ninguém conseguia obter dela uma resposta directa e precisa sempre que as questões diziam respeito à sua origem.

Mesmo que a submetessem às mais sofisticadas técnicas e métodos de tortura, seguramente nunca revelaria a sua filiação biológica, porque, afectivamente falando, a sua filiação era outra.

Ela sabia que era filha ilegítima.
E sabia de quem.
Mas tanto abominava quem lhe deu o nome que tanto gostaria de apagar de todos os registos possíveis e imaginários, como a mulher que julgava que poderia fazer-se passar por sua verdadeira mãe.

Aqueles que apresentava como sendo a sua família, na verdade, não lhe tinham qualquer laço de consanguinidade. Mas eram eles o verdadeiro objecto de amor e carinho de Pi. Os únicos seres do mundo a quem respeitava.
Todos os outros – “o útero que me pariu” e “a serranada que me criou”, como “carinhosamente” lhes chamava quando falava de si para si – tinham deixado de existir.

O ar aciganado da mulher que a viu crescer era tão diferente da visão majestosa em que Piedade da Consolação se transformou… Uma visão que Pi queria acreditar ser a sua inegável e exclusiva imagem de marca… Sem saber que caminhava, a passos largos, para uma fotocópia daquela a quem apelidou de “útero”.

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quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Pi - Parte I (2)

Os seus segredos eram tantos quanto as casas decimais de π . Poder-se-ia dizer que tinha dois ou três grandes segredos por cada traço – vincado – da sua personalidade. Mas poucos eram os que se atreviam a tentar, sequer, enumerar as suas “qualidades”.

Pi é muito, mas muito mais, que uma série infinita de somas do que cada um de nós conhece dela.

Por favor, não me interpretem mal.
A Pi é uma Mulher.
Assim mesmo. Com letra maiúscula e tudo.
Poucas são as mulheres que souberam sobreviver e, sobretudo, viver, como ela o fez e faz.

Mas as verdades são para ser ditas, ainda que para muitos dos seus eternos apaixonados elas não passem apenas de silvos de cobras invejosas. E eles, coitados, que nem sequer são ofidioglotas como o Harry Potter, que fala e entende a língua das cobras…

E a verdade é que Pi era completamente irracional, inexplicável… E de uma beleza tão simplesmente mística, que se lhes afigurava como se estivessem perante a verdadeira Presença Divina.

A contemplação – e, porque não, a adoração - de Pi era uma experiência pela qual passavam como se, no deserto das suas vidas, lhes tivesse sido oferecida a miragem de um anjo. Um daqueles anjos capazes de “levar um padre a apedrejar um vitral”, se é que me faço entender.

Não era, portanto, difícil de calcular, tanto mais não fosse por aproximações mais ou menos sucessivas, que a Piedade da Consolação tinha, forçosamente, que morrer para que Pi pudesse existir.

(continua)

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quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Pi - Parte I

π é a mais antiga constante matemática que se conhece. É um número com infinitas casas decimais, não periódico, irracional e transcendente.

E ela era mesmo assim. Ninguém sabia o seu nome de baptismo. Onde quer que fosse – no trabalho, em família, no seu círculo de amigos – todos a tratavam por Pi.
Piedade da Consolação era uma incógnita que, apesar de parecer um scan da cara da Pi, só existia numa porcaria a que ousaram chamar Bilhete de Identidade. Como se o que constitui uma identidade se resumisse a um cartão encadernado a plástico, com uma foto tipo-passe tirada à pressa numa qualquer cabina do Metro de um lado e um borrão de tinta do outro.

Com uma desenvoltura fora de comum, não era de estranhar a classe com que utilizava termos de calão, deixando muitos dos que com ela privavam a interrogar-se acerca da verdadeira origem dos seus prosaicos dotes de conversação.
E, a comprovar isso mesmo, tratava de os aplicar na classificação de si mesma.
Se acordava bem disposta, não era raro ouvi-la dizer que tinha vestido a sua pele de Cabra Montês. “Montês? Não quererás dizer montesa?” Claro que não: ela era uma rural, sim, mas uma rural sofisticada, interessante… E uma verdadeira cabra se tratavam de a relembrar disso mesmo. Daí que, sempre que se cruzava com um dos seus amigos de infância, apenas mencionava que se tinha cruzado com um montanheiro.

Esta forma insultuosa de tratar todos os que pertenciam ao seu passado, parecia ser apenas mais uma maneira encontrada por Pi para exorcizar de si a Piedade da Consolação.

(continua)

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segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Chaos Theory

Em matemática, a infinidade dos números impede que se criem modelos precisos que expliquem os fenómenos.
Na vida, a infinidade de possibilidades de escolha impede que existam 2 pessoas com a mesma explicação para uma mesma realidade. A isto se chamam... Pontos de vista.

Coloquem as tais 2 pessoas e os seus diferentes pontos de vista numa relação. Qualquer tipo de relação.
Agora peçam-lhes que, juntos, atinjam uma qualquer meta.
É o Caos.... antes da Perfeição.

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