quinta-feira, 13 de março de 2008

Poliedra – Parte I (5)

As vezes que era perseguida pelos colegas de escola com a cantilena da Poliedra “negra e escura como a pedra” diminuíram. Diria até que desapareceram por completo.

Era agora temida pelos colegas e admirada pelas colegas: corria mais que eles e era mais mulher que elas.
E fazia valer-se disso.

Ainda que algo desengonçada, Polly era ágil.

Não sabia o que fazer…
Longe do bulício das cidades, e dos professores que lhe indicariam os exercícios adequados à sua (tão normal!!!) assimétrica condição de adolescente, procurou os conselhos do Pai.

De figura frágil e pouco atraente, o Pai cedo percebeu o extremo a que Polly levou a sua mensagem. A ânsia, o desespero com que procurava respostas quanto aos métodos que poriam fim à sua tão pouco apelativa – pensava ela! - forma física, enlouqueciam a casa inteira…

No tempo que passava no casarão, – que era cada vez menos - ela subia e descia as escadas vezes sem conta, derrubando tudo e todos que com ela se cruzavam. A criadagem apelidou-a de terramoto, mas, na verdade, ela parecia-se cada vez mais com um tufão.

Face ao cataclismo doméstico anunciado, Pai e Mãe decidiram que mandá-la andar pela Serra não lhe faria mal nenhum. No mínimo, gastaria toda aquela energia e vitalidade que ameaçavam acabar com a sanidade mental de todos os habitantes daquela casa.
Ao mesmo tempo, ganharia destreza e aumentaria a agilidade. Caminhar ao sol e respirar o ar mais puro que se conhece, não traria, com toda a certeza, nenhuma consequência nefasta.

Pensavam eles…

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segunda-feira, 3 de março de 2008

Poliedra – Parte I (4)

Os anos passaram muito devagar, mortificando Poliedra, que mal podia esperar pela metamorfose de patinho feio para cisne gracioso… Como a Mãe.

Sim, Polly foi crescendo.

As vezes que o Pai lhe pedia que viesse sentar-se ao seu colo foram diminuindo.

Tudo em si aumentava de tamanho: as pernas, longas, terminando numas coxas cada vez mais roliças; o rosto, já longe da criança que foi, que desaparecia por detrás de uns revoltosos cabelos castanho-chocolate; o peito, enganador, altaneiro por sobre uma cintura de vespa….

Não era de todo estranho que se sentisse desproporcional, como se os joelhos se perdessem nas coxas e pudesse quebrar-se por aí… ou, até mesmo, pela cintura, que acabaria por vergar face ao peso dos seios.

Mas nada disso aconteceu.

Então, o Pai ensinou-a a tirar o melhor partido desta assimetria corporal temporária.

Dando-lhe uma vaga noção de que a harmonia das formas se manifesta na simetria das mesmas, o Pai explicou-lhe que essa mesma harmonia se conquista com o tempo, transmitindo-lhe, implicitamente, que, se queria ser bela e desejável, havia muito que podia fazer por isso.

Polly interiorizou esta breve explicação de tal maneira, que nada, na sua forma de conviver com o seu próprio corpo, seria igual.

As pedras da Serra começaram por ser as únicas testemunhas desta transformação de mentalidade, deste transtorno psicológico em que se tornou a vontade de Polly em domar o seu próprio corpo.

Mas nem só de pedras vive a Serra…

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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Poliedra – Parte I (3)

Não. Conscientemente, não.

Polly nunca poderia desejar a quem quer que fosse uma relação como a que tinha com a Mãe.
Não era por mal, mas não sabia lidar com toda a admiração que sentia por ela: aqueles olhos, os cabelos negros brilhantes… A figura – invejável, sim! – de diva, de femme fatale, na forma como segurava a boquilha entre dedos e a levava àqueles lábios carnudos e sempre de um vermelho sensual.

O pior de tudo era a desilusão que a inteligência da Mãe lhe provocava...

Como?, como é que uma mulher como ela se tinha ido esconder do mundo ali? Justamente ali, no meio do nada?

Como é que uma mulher que podia ter o mundo na palma da mão e soprá-lo para onde bem entendesse, foi capaz de abdicar do exercício de todo o seu poder de sedução e esconder-se ali, naquela terra, no meio daquela gente?

«Poliedra, sabe quem eu sou, na verdade?», questionava a Mãe sempre que a apanhava, absorta, a seguir-lhe todos os gestos com o olhar.

«Mãe?», dizia para ganhar tempo.
Tempo suficiente para recuperar do efeito inebriante que era olhar aquela mulher… a sua Mãe. Se ao menos tivesse a certeza de que iria ter metade daquele glamour quando crescesse….

«Poliedra, ouviu o que lhe perguntei?», insistia.

«Desculpe, Mãe, estava a admirar a cor do seu vestido…». E notava uma súbita melancolia inundar o olhar da Mãe.

Pestana a pestana, aqueles olhos, lindos, castanhos, dourados, mergulhavam em memórias inacessíveis. Mergulhavam tão fundo que Polly pressentia a Mãe a afogar-se…

«Mãe, não percebo onde quer chegar com essa pergunta…»

«Sabe quem sou para além do que vê? Sabe que venho destas pessoas que tanto abomina?»

Então era isso.
Quase que o esquecia.
Ao olhar-se para ela, ninguém diria.
A Mãe era filha da Serra.

Isso deixava-a muito confiante. Fazia-a acreditar que, também ela, poderia vir a ter aquela aura, aquela presença que a todos influencia… mas que, no seu caso, só cativava o seu próprio Pai.

Polly precisava de ter a certeza que, no futuro, seria 100% filha de sua Mãe.
Contudo, o papel de Polly nesse destino, foi apenas o de uma ponte entre gerações…

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quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Poliedra – Parte I (2)

«Se a Mãe não sofresse tanto desse seu complexo de Hipátia, talvez eu gostasse mais de si», sibilava Polly de cada vez que se sentia atacada ao ouvir o seu nome próprio. Dito pela mãe era como se não fosse pronunciado mas, isso sim, vomitado… Rejeitado como algo que desejámos sofregamente mas que acabou por enjoar.

«E a menina Poliedra, terá, por um mero acaso, inveja?», questionava-a a Mãe, em tom insinuante.

«Inveja, Mãe?, de quê: de ter tido a mesma educação esmerada que Hipátia – treino físico diário, arte, ciência, literatura, filosofia e sabe-se lá que mais - mas, ao contrário da primeira grande mulher matemática de que reza a história, o seu único feito considerável e original foi dar à sua filha a versão feminina do nome de um sólido geométrico?!?»

«Poliedra, Poliedra…», repetia a Mãe, de sorriso irónico nos lábios.

E, aos ouvidos de Polly, aquela palavra, irritantemente repetida naquele tom, apoderava-se dela… E fazia-a vibrar até ao canto mais recôndito das suas entranhas.

«A única biblioteca onde a Mãe se senta, em nada é comparável à de Alexandria», replicava depois de retomar o fôlego, «por isso, não queira comparar o "trono" de Hipátia com o seu. De resto, lamento tê-la desapontado pelo simples facto de ter vindo ao mundo no lugar do seu tão desejado menino…»

E as provocações repetiam-se, em catadupa, numa espiral de violência verbal onde o início, meio e fim eram já velhos conhecidos de ambas.
Era este o ponto alto da relação de Polly com a sua Mãe; aquele em que reconhecia que ela era um ser poderoso de saber, gentileza, palavra, talento e beleza, como alguém um dia descreveu a filha de Teão de Alexandria.

De resto, o mau gosto demonstrado no nome que tinha escolhido para lhe dar, dominava todos os outros sentimentos de Polly pela Mãe.

Estaria Polly a tentar prolongar esta relação de amor-ódio entre mãe e filha quando, anos mais tarde...

(continua)

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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Poliedra - Parte I

“Só gostava de saber quem foi o patifório que subornaram para poderem registar-me com este nome!!!!”, berrava ela a plenos pulmões, vezes e vezes sem conta, sempre do cimo daquela dupla escadaria.
Mas não era só disso que gostava: também gostava que todos – TODOS sem excepção – soubessem que considerava o seu nome próprio uma perfeita aberração!

Poliedra.

“Ninguém se chama Poliedra!”

Quanto muito Poliedro, mas teve a sina de nascer rapariga, e a mãe, mulher de fortes convicções, - ou deverei antes dizer…. Teimosa!?! – não se deu sequer ao trabalho de escolher outro nome. Afinal, era assim mesmo que ela imaginava o seu rebento: um ser de carácter sólido, cuja superfície, composta por um número finito de faces, ela conheceria como ninguém.

Mas, ao invés disso, veio ela.

Poliedra.

Ou Polly, como o pai a tratava e como ela obrigava todos a tratarem-na.
Todos, menos a mãe, claro está.

Esta sua raiva – muito pouco contida, diga-se - vinha dos seus tempos de meninice, da cantilena com que os outros miúdos a perseguiam desde que o Sol nascia até que as estrelas começavam a assomar no negro azulado do céu:

«Polly, Poliedra / escura e feia como a pedra /
Polly, Poliedra / junto dela o mal medra»

Polly conhecia muitas pedras. Viver no meio da Serra não lhe dava muito mais para contemplar. Sabia-as de cor: onde estavam, quais as suas cores na madrugada, ao nascer do sol, ao meio-dia e ao pôr-do-sol.
Quando estava cansada, ao invés de as visitar, deitava-se na sua cama, recordava-as uma a uma, e imaginava com o que se assemelhavam: animais, pessoas, seres mitológicos…

Por isso, quando se olhava ao espelho, não compreendia as duras palavras da ladainha: não conhecia nenhuma pedra feia e ela, Polly, não era escura… Bom, talvez o fosse a sua alma, mas, naquela idade, Poliedra ainda estava muito longe de o saber, ainda que a pequena melodia o já adivinhasse.

(continua)

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terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Another Chaos Theory

«Uma lei básica da Teoria do Caos afirma que a evolução de um sistema dinâmico depende crucialmente das suas condições iniciais.
O comportamento do sistema dependerá então da sua situação "de início".
Se analisarmos o mesmo sistema, sob outras condições iniciais, logicamente ele assumirá outros caminhos e mostrar-se-á totalmente diferente do anterior.».

O que explica, então, os comportamentos irracionais e transcendentes de Pi?

Onde estão as “condições iniciais” para que possamos entender o caos em que se tornou a sua vida?

Ou talvez devesse tentar enumerar quantas “situações de início” viveu Pi…

Antes dela existir, havia a Piedade da Consolação:
Quais as condições em que existiu? Em que condições morreu para dar lugar a Pi?

Tantos caminhos percorridos por Pi para fugir de Piedade da Consolação…

Quantas vezes mudou ela as suas condições iniciais, desbravou outros caminhos, apenas para se mostrar totalmente diferente de si mesma?
Quantas vezes se reinventou para assassinar de vez Piedade da Consolação e ser apenas uma tábua rasa onde pudesse gravar um novo sistema dinâmico de Pi?

Mas o que ela não sabia é que o sucesso da soma sucessiva de todas as tentativas de reinvenção de si mesma – aquela que conhecemos como Pi – era, nada mais, que uma reinvenção de um outro sistema dinâmico, condição inicial da sua própria existência: o “útero que a pariu”.

E, para calcularmos os caminhos passados e futuros de Pi, nada melhor que analisarmos o comportamento de quem provocou a sua primordial situação de início: Polly.

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Pi - Parte I (3)

Tal como a organização de espionagem da Alemanha de Leste com o seu nome, – do filme “A Cortina Rasgada” de Alfred Hitchcock (1966) – Pi fazia tudo para encobrir o rasto de Piedade da Consolação.

Prosseguindo no melhor estilo / aura de mistério e perigo que sempre envolvem este tipo de organizações, Pi era perita em sobreviver a interrogatórios de toda a espécie. Ninguém conseguia obter dela uma resposta directa e precisa sempre que as questões diziam respeito à sua origem.

Mesmo que a submetessem às mais sofisticadas técnicas e métodos de tortura, seguramente nunca revelaria a sua filiação biológica, porque, afectivamente falando, a sua filiação era outra.

Ela sabia que era filha ilegítima.
E sabia de quem.
Mas tanto abominava quem lhe deu o nome que tanto gostaria de apagar de todos os registos possíveis e imaginários, como a mulher que julgava que poderia fazer-se passar por sua verdadeira mãe.

Aqueles que apresentava como sendo a sua família, na verdade, não lhe tinham qualquer laço de consanguinidade. Mas eram eles o verdadeiro objecto de amor e carinho de Pi. Os únicos seres do mundo a quem respeitava.
Todos os outros – “o útero que me pariu” e “a serranada que me criou”, como “carinhosamente” lhes chamava quando falava de si para si – tinham deixado de existir.

O ar aciganado da mulher que a viu crescer era tão diferente da visão majestosa em que Piedade da Consolação se transformou… Uma visão que Pi queria acreditar ser a sua inegável e exclusiva imagem de marca… Sem saber que caminhava, a passos largos, para uma fotocópia daquela a quem apelidou de “útero”.

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